Já aqui referi Virginie Despentes* e o seu ensaio sobre
prostituição, violação e pornografia. Gostava de falar, desta vez, do segundo
tema.
Violação igual a vergonha. Mas vergonha de quê, exactamente?
De se ter sido sujeita a um dos crimes mais traumatizantes, apenas possível
pela submissão do outro pela força, sexualmente. Quando alguém é assaltado ou
espancado, o sentimento não é o mesmo: pode-se mencioná-lo livremente sem se
ser catalogada.
Despentes, que foi violada, fala-nos da sua experiência na
primeira pessoa. Defende que este tipo de crimes apenas são possíveis porque
representam exactamente o tipo de relação desigual entre géneros que vivemos
ainda hoje. Se não vejamos.
A literatura, religião, cinema, são apenas alguns exemplos dos
veículos que formam o ideal da mulher submissa. O nosso imaginário sexual
colectivo é fundado na fêmea que espera, passiva, o seu amante. A Bela Adormecida
e o seu príncipe, a Rapunzel na sua torre. Nenhuma delas faz, propriamente,
nada de especial. Não é por acaso: se fizesse, isso retirar-lhes-ia a sua
feminilidade. Consequência disso é grande o número de mulheres que se sente
excitada pela violação (homens também, suponho, só que no sentido cómodo
inverso). É sintomático, não casual.
Depois de evocar, por exemplo, as imagens das mártires, Despentes
escreve: “No mundo
judaico-cristão, é melhor ser-se forçada a ter relações sexuais do que tomada
por puta, já no-lo fizeram entender suficientes vezes. Não existe uma
predisposição feminina natural ao masoquismo, tal não vem das nossas hormonas
nem do tempo das cavernas, mas sim de um determinado sistema cultural e tem
implicações incómodas no exercício da própria independência.” O que faz com que
muitas vezes a violação se camufle com outros nomes (“ela merecia isto e
aquilo”, “só uma porca para fazer aqueloutro”) o que só acontece porque a
sociedade actual nos forma para esse tipo de submissão.
Despentes reflecte, por exemplo, sobre o facto de que,
quando uma mulher é violada, ninguém gosta que ela se manifeste muito sobre o
assunto. Sub-repticiamente, espera-se que tenha uma vida terrível a seguir, que
ganhe, por exemplo, 20 quilos, ou nunca mais consiga ter uma relação com um
homem. Se não acontece nada disso, então é porque “gostou”...
Assim sendo, o número de violações oficial (no nosso pais e
no mundo) está bem longe de corresponder ao número real. Muitas mulheres andam
mergulhadas na vergonha e no medo, e o que é pior: encarando isso como a ordem
natural das coisas, um segredo sobre o qual não fica bem falar. A vergonha cai
sobre a vítima e não sobre o agressor.
Defende-se aqui, portanto, um sistema em que à mulher não
seja constantemente impingida a ideia de que, para ser aceite socialmente, deve
ser frágil e dócil, tímida e resignada, não fazer muitas ondas, tudo para
agradar. A igualdade de direitos e a prevenção criminal começam na educação. Um
direito a reagir, a defender-se.
* Referido aqui
Subscrevo a ideia do último parágrafo.
ResponderEliminarNão a conhecia mas já estou fascinada com a Despentes.