sábado, 29 de janeiro de 2011

O Egipto contra Hosni Mubarak

Atravessei o Cairo na manhã de dia 25, há cinco dias atrás; uma calma anormal povoava a outrora fervilhante megalópole Egípcia, subitamente esvaziada e silenciosa. Centenas de carros blindados ladeavam as estradas, e homens fardados aguardavam ansiosamente juntos dos mesmos. “Não saias à rua – avisava-me, por sms, uma amiga local – hoje é demasiado perigoso”. Pensei que talvez fosse exagero. Só percebi que não assim o era quando vi a poucos metros de mim as multidões quebrarem barreiras policiais, gritando entusiasticamente, assobiando contra os canhões de água e bombas de gás lacrimogéneo. Os egípcios, povo naturalmente calmo e paciente, tinham finalmente despertado, após um pesado sono de três décadas.
Era o Dia da Polícia. Sim, o governo decidira dedicar um feriado a esta instituição, símbolo por excelência de um Estado autocrata, e opressor dos direitos fundamentais. Por reacção ao que consideraram uma flagrante afronta, milhares de pessoas invadiram a Midan Tahrir – que, à letra, significa Praça da Libertação – reclamando a queda do governo de Hosni Mubarak. Aquele que foi denominado o Dia da Ira ficou para a História, como uma das maiores manifestações nacionais jamais vistas. Uma nova geração, vendo abater-se sobre si o mesmo destino que coubera aos seus pais, resolveu pôr um fim ao regime. Comunicaram através do Twiter, Facebook, e blogs. Trinta anos do mesmo homem no poder apenas trouxeram fome, desemprego, e opressão.
No dia 26, na véspera da minha partida, as coisas não fizeram senão aquecer. Emociono-me ao ver a minha viagem de três meses ao Egipto terminar assim. Assistindo ao fim de uma era. Ouviam-se os gritos, as sirenes da polícia e das ambulâncias. Do cimo do hotel, na Midan Talaat Harb, era possível ver bandos de homens carregando enormes paus; eram polícias à paisana, pagos ao dia para se infiltrarem nas manifestações. Volta e meia, pegavam num cidadão aleatório, e enfiavam-no numa carrinha. Ninguém sabia para onde iam. Podia-se, no entanto, adivinhar; ali são bem conhecidas as torturas e espancamentos que acontecem recorrentemente nas esquadras.
Regresso a Lisboa no dia 27, para aprender que, em três meses, nada de significativo mudou. É sempre essa a sensação, quando se chega de uma longa viagem. A crise continua a afectar os portugueses, o governo parece alienado da realidade, e houve umas eleições às quais não se ligou muito. Espantosamente, o acontecimento mais marcante parece ter sido a morte de um colunista do social, por parte de um aspirante a manequim.
Acordo no dia 28 da manhã, em Lisboa. Meio aturdida, concluo que não reconheço este quarto de hotel; depois de despertar totalmente, porém, percebo que afinal não estou mais em viajem pelo Egipto, mas sim em casa. Mal sabia que me aguardava um longo dia junto à televisão. De olhos cravados na Al Jazeera, sigo passo a passo os acontecimentos do dia. Mal posso acreditar; as ruas e as praças pelas quais ainda há pouco caminhei estão irreconhecíveis. O governo mandou abaixo a Internet, e as comunicações por telemóvel (entre as quais, a Vodafone); mas isso não fez senão aumentar a motivação das pessoas para a mudança. O povo incendiou a sede do PND. A Sexta-feira da Ira, como se iria chamar, alastrou as manifestações sem precedente pelo Egipto fora. Agora já não é apenas o Cairo, mas Alexandria, o Suez, Mansoura... O país inteiro parece estar a experienciar aquele que é o início de uma revolução. Sinto um nó no estômago, tenho as mãos a tremer; pois três meses são suficientes para criar uma empatia significativa. Olho para aquelas caras e tento, estupidamente, reconhecer alguma; não seria fácil, pois os egípcios são 80 milhões. Cidadãos corajosos, enfrentando uma força policial intransigente e brutal, reclamam eleições livres, e a queda do actual regime. O que vai acontecer, ninguém sabe. Apenas que nada nunca será o mesmo.
Num discurso prepotente e hipócrita, Mubarak mostrou-se ontem ao mundo como um líder generoso e compreensivo. Certamente não foi ele que mandou espancar o seu povo, não foi ele que ficou com todo o dinheiro que lhe era devido, e também não foi ele, suponho, que mandou encerrar as telecomunicações, negando-lhes a liberdade de expressão? Os Estados Unidos, receosos de perder o seu principal aliado na zona, para uma oposição que julgam ser de maioria islamita, entraram no jogo tentando manter a fachada de que tudo estava bem; apoiando teimosamente esse castelo de cartas que é o (que resta do) governo actual. Será interessante acompanhar os futuros desenvolvimentos. Por quanto tempo se manterá este teatro?
Os egípcios ganharam a força que lhes faltava, graças ao exemplo da Tunísia. Ver que eles também tinham esse poder, e que não estavam sozinhos, foi o melhor incentivo. Mostrar-lhes que o mundo está com eles, é o que podemos fazer para que agora se dê uma viragem definitiva.