quarta-feira, 27 de julho de 2011

O tuga no "estrangeiro"

Os jornais abarrotam com a tragédia que abalou o mundo. Praticamente uma centena de jovens inocentes foi morta graças à mente pervertida de um maníaco, em prol de um ideal perverso e sem nexo. No entanto, para os noticiários portugueses, apenas uma e só uma coisa interessa: recolher a opinião do tuga no local.

Pouco importam os peritos, psicólogos e presidentes; pouco importam as vítimas, ou mesmo as suas famílias. Querem saber como a Noruega está a reagir a esta crise? Vão à internet procurar. A nós, o que nos interessa mesmo saber é o que um português qualquer, que estava na cidade por acaso e que nem sequer tem nada a ver com o assunto, pensa sobre aquela matéria. Porque, note-se, isso é muito mais importante. Em geral, quando algo grande acontece a nível internacional, os jornalistas dedicam o seu tempo de pesquisa e os seus recursos a procurar, não factos interessantes ou informativos, mas sim portugueses. Simplesmente isso: portugueses.
“Chamo-me Joel da Silva, por acaso estava aqui de férias em Oslo e, realmente, olhe que isto é uma grande desgraça, anda tudo muito desanimado. Os meus filhos e a minha mulher até disseram que...” Ai sim? Temos realmente orgulho naquele individuo aleatório, e no chorrilho de bitaites desinformados que ele tem a comunicar-nos. Dedicamos-lhe um tempo de antena infinito, em conversas telefónicas de má qualidade e sem interesse, porque ele é o nosso herói: ele é “o português que estava lá a passar férias”.

Não que eu tenha alguma coisa contra os portugueses que passem férias na Noruega. Fico extremamente feliz por eles, embora pressinta que os seus planos de lazer tenham sido ligeiramente abalados. Mas isto para constatar que o nosso orgulho nacional se resume, de facto, apenas a isso. Desde os tempos idos da emigração setentista, que qualquer compatriota que venha de fora é considerado uma espécie de herói, um sobrevivente desbravador de novas terras, um bravo descobridor do além. Mesmo que se trate do maior burgesso à face do planeta. “Estar no estrangeiro” confere-lhe, imediatamente, outro estatuto.
Foi por isso que ficámos tão contentes com a notícia de que o reactor nuclear da Bobadela e o Durão Barroso estavam na “lista negra” de Anders Breivik. Digam o que disserem, era indisfarçável o entusiasmo dos repórteres pelo facto de constarmos, nós também, numa base de dados internacional de qualquer espécie; mesmo que neste caso a de um lunático homicida. Podemos patinhar no fundo de um poço financeiro sem esperança, afundados em dívidas e dominados pela crise. Mas estar na lista de alvos a abater de um maluco, isso, oh isso, não, ninguém nos tira!

terça-feira, 12 de julho de 2011

Memoriae

Tome um ao jantar – sentenciou ele, com a sua impaciência muito jovem, olhando displicentemente o relógio, porque afinal de contas teria uma vida lá fora, longe dos armários e cheiro a remédios. A rotina não era nova. Já há muito se me criara o hábito de tragar como sobremesa a salada colorida de ácidos e enzimas que não fazem senão retardar aquilo que para todos é inevitável. A diferença deste residia no facto de ser o prenuncio de algo mais considerável. Uma atrofia generalizada, com perda neuronal específica em certas zonas do hipocampo, vulgarmente conhecida por Alzheimer.
A morte é uma ceifeira metódica. Primeiro leva-nos os amigos, depois a mulher, e agora até os gatos parecem miar com mais vagar, como se antevissem o que aí vem. Chamo-me José, tenho 86 anos, e lembro-me da casa que construi, com as próprias mãos, ao mudar-me para Lisboa. Situava-se num morro meio careca, vagamente semeado de habitações, no tempo em que o Campo Grande ainda era de facto composto por campo. Com paciência e determinação, como dizia o meu pai, se conseguem as coisas. Toda a minha vida segui esse lema, e hoje concluo que fui um homem bom. Cedo, porém, não recordarei quem sou. Os primeiros sintomas: esquecimento, confusão, irritabilidade. Tudo coisas que não me fazem diferença, já que tenho na memoria com exactidão o quarto de Beja onde nasci. Os berros e a parteira, esses, talvez não. Mas de nada lhes serve. Usam como prova o facto de por vezes me esquecer das caras e pessoas. No outro dia apareceu cá o Esteves e sem querer confundi-o com o meu falecido irmão. Interpretaram isso como um sinal. Dizem que um dia não poderei fazer as necessidades sozinho, ou sequer sair da própria cama sem a ajuda de um enfermeiro. Atiraram-me com essa palavra: demência. De todos os modos, foi por isso que me levaram a Catarina.
O carro vermelho que tem a Amélia lá dentro chegou numa tempestade carburadora. Sete anos passaram depressa, mas ela continua igual. Não sei se está com o mesmo homem, ou sequer se já saiu da tal instituição. Para o juiz deve servir já que prefere uma drogada a um velho que qualquer dia não sabe nem como cagar. Tiraram-me a minha menina. E reduziram à ausência estes anos todos em que, diriam os espertos, tentei compensar com uma neta as falhas na educação de uma filha. Não é fácil. Ninguém nos ensina a ser pais. Mal damos por nós o tempo passou e fizemos tudo errado, ou pelo menos foi o que ela disse. Que fiz tudo errado.
Posso estar chéché, mas ver, lá isso continuo a ver bem. Daqui lobrigo o lacinho cor-de-rosa que lhe ofereci pelo Natal. Está cada vez mais longe, e cedo não passará de uma mancha, junto com o fumo do carro vermelho. No regaço, espero que ainda traga o Botas, e que não lhe arranque de uma vez os olhos de botão já descaídos. Dizem que estes miúdos de hoje preferem os brinquedos modernos, mas a minha Catarina sempre se contentou com as coisas parcas da vida. Vou-me sentar aqui a ver afastar-se o que resta daquilo que fui. Cedo tudo não passará de uma rotina remendada por lapsos e lacunas. Dizem que vou esquecer a própria fala. Dizem que vou esquecer quem sou. Talvez a morte seja isso, o desaparecimento completo das palavras, até já não haver nada capaz de provar que um dia existimos.