domingo, 12 de junho de 2011

A nova era

Chegando ao nono ano, e vendo que os pais não lhe podiam dar a possibilidade de prosseguir os estudos, Sofia entrou como empregada numa cadeia de fast-food. Trabalhava as 40 horas semanais, 50, às vezes, para ganhar 500 euros.
Aos 17, e embora estivesse a tomar a pílula contraceptiva, uma gravidez inesperada e um futuro filho que não podia sustentar obrigou-a a fazer um aborto numa clínica ilegal, graças ao qual uma complicação lhe tirou para sempre a possibilidade de engravidar.
Percebeu que a sua carreira só progrediria se adquirisse mais educação. Mas a restauração, como se sabe, quase não permite horários "normais". Aos 30, e com um pouco mais de tempo, resolveu começar a completar uma formação profissional. Hoje, é gerente de loja, e recebe finalmente os tão almejados 700 euros.

Sofia é, para uns, apenas uma caricatura. Mas cruzo-me todos os dias com ela na rua. Pode não ser tão trabalhadora, ou perseverante. Pode ter sido uma aluna mediana. Pode até ter sido medíocre. Mas se como eu, e outros tantos conhecidos, tivesse nascido num meio economico-social favorável, poderia ser CEO de uma empresa, e ganhar meio milhão de euros por ano. Podia, não estou a dizer que o fizesse. Podia, mas não poderá. Podia ainda , apesar disso, estar a fugir aos impostos, e ainda a pressionar governos para ser ainda menos tributada nas suas actividades, e distribuir prémios milionários sem razão aparente. Podia estar a dizer que tudo o que tinha fora conseguido através do mérito. Mas, provavelmente (salvo honrosas excepções) não seria só mérito, mas também o facto de ter nascido no lugar certo à hora certa.

O dinheiro está cá, Portugal é um dos países da Europa onde é mais fácil fazer (muito) dinheiro. É também fácil esbanjá-lo, em obras públicas que só aproveitam a quem as constrói. Só não está nos lugares certos.
Com este novo governo, mais do que nunca, cada um vai "ganhar o que merece", ou seja, segundo a lógica neo-liberal (mascara atrás da qual se esconde muitas vezes o maior conservadorismo), consoante a procura no mercado para o serviço que presta, sem regras nem limites. É muito fácil fazer dinheiro, só é preciso é ter bastante para começar.

As pessoas qualificadas ganham mais do que as outras, e ainda bem. Há que estimular a economia nesse sentido. Apenas defendo limites para esses ganhos, uma tributação justa e proporcional, que permita um amparo mínimo a quem mais precisa para sobreviver. Não é nada de novo, apenas o é neste pais.
Tanto eu, como muitos ex-colegas de curso, nunca teríamos conseguido pagar os estudos se não fosse a ajuda dos nossos pais, ou seja, se não tivéssemos nascido numa estrutura económica suficientemente sustentada, que nos permitiu acesso a uma carreira mais remunerada. Noutros países teríamos acesso privilegiado à saúde, ajudas na educação e na renda da casa; mas cá não. Se não fossem os pais desses meus colegas, metade deles estaria a lavar pratos na pizza hut. Mas hoje escolheram virar as costas e fechar os olhos, num negacionismo egoísta que só se entende como sendo uma cegueira social absoluta, própria de país em que o tão ultrapassado conceito de "classes" ainda existe. Só se entende porque, para eles, Sofia é apenas um número, e não uma pessoa real.
Para muita gente, se Sofia for despedida e não conseguir outro emprego tão cedo, é só mais uma "preguiçosa" que "apenas não quer trabalhar". Se estiver dois anos numa lista de espera de um hospital público será por culpa própria, porque “quer chular o sistema”. O seu diploma, como o disse o novo Primeiro Ministro, é um “certificado de ignorância”. O azar de ser mulher numa sociedade ainda um pouco machista e de não poder sustentar um filho é um “crime contra a vida” (como defende o futuro ministro Paulo Portas).
A precariedade de Sofia, e o facto de não ter estudado, vai impedi-la de contribuir em toda a sua capacidade para o crescimento económico do país. Sim, o corte nos ditos “chupistas” e “inúteis da sociedade” só os vai tornar mais dependentes. Não é preciso ir muito longe, veja-se o exemplo da Grécia.

Liberalizar pode ser positivo quando é feito com moderação, em certas áreas, pois leva a uma evolução qualitativa, própria da concorrência saudável. Selvaticamente, porém, apenas contribuirá para uma sociedade mais desigual, com (ainda) menos igualdade de oportunidades. Estará tudo bem para quem tem sorte, mas quem não tem, tivesse. Bem vindos ao país mais africano da Europa.

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