terça-feira, 12 de julho de 2011

Memoriae

Tome um ao jantar – sentenciou ele, com a sua impaciência muito jovem, olhando displicentemente o relógio, porque afinal de contas teria uma vida lá fora, longe dos armários e cheiro a remédios. A rotina não era nova. Já há muito se me criara o hábito de tragar como sobremesa a salada colorida de ácidos e enzimas que não fazem senão retardar aquilo que para todos é inevitável. A diferença deste residia no facto de ser o prenuncio de algo mais considerável. Uma atrofia generalizada, com perda neuronal específica em certas zonas do hipocampo, vulgarmente conhecida por Alzheimer.
A morte é uma ceifeira metódica. Primeiro leva-nos os amigos, depois a mulher, e agora até os gatos parecem miar com mais vagar, como se antevissem o que aí vem. Chamo-me José, tenho 86 anos, e lembro-me da casa que construi, com as próprias mãos, ao mudar-me para Lisboa. Situava-se num morro meio careca, vagamente semeado de habitações, no tempo em que o Campo Grande ainda era de facto composto por campo. Com paciência e determinação, como dizia o meu pai, se conseguem as coisas. Toda a minha vida segui esse lema, e hoje concluo que fui um homem bom. Cedo, porém, não recordarei quem sou. Os primeiros sintomas: esquecimento, confusão, irritabilidade. Tudo coisas que não me fazem diferença, já que tenho na memoria com exactidão o quarto de Beja onde nasci. Os berros e a parteira, esses, talvez não. Mas de nada lhes serve. Usam como prova o facto de por vezes me esquecer das caras e pessoas. No outro dia apareceu cá o Esteves e sem querer confundi-o com o meu falecido irmão. Interpretaram isso como um sinal. Dizem que um dia não poderei fazer as necessidades sozinho, ou sequer sair da própria cama sem a ajuda de um enfermeiro. Atiraram-me com essa palavra: demência. De todos os modos, foi por isso que me levaram a Catarina.
O carro vermelho que tem a Amélia lá dentro chegou numa tempestade carburadora. Sete anos passaram depressa, mas ela continua igual. Não sei se está com o mesmo homem, ou sequer se já saiu da tal instituição. Para o juiz deve servir já que prefere uma drogada a um velho que qualquer dia não sabe nem como cagar. Tiraram-me a minha menina. E reduziram à ausência estes anos todos em que, diriam os espertos, tentei compensar com uma neta as falhas na educação de uma filha. Não é fácil. Ninguém nos ensina a ser pais. Mal damos por nós o tempo passou e fizemos tudo errado, ou pelo menos foi o que ela disse. Que fiz tudo errado.
Posso estar chéché, mas ver, lá isso continuo a ver bem. Daqui lobrigo o lacinho cor-de-rosa que lhe ofereci pelo Natal. Está cada vez mais longe, e cedo não passará de uma mancha, junto com o fumo do carro vermelho. No regaço, espero que ainda traga o Botas, e que não lhe arranque de uma vez os olhos de botão já descaídos. Dizem que estes miúdos de hoje preferem os brinquedos modernos, mas a minha Catarina sempre se contentou com as coisas parcas da vida. Vou-me sentar aqui a ver afastar-se o que resta daquilo que fui. Cedo tudo não passará de uma rotina remendada por lapsos e lacunas. Dizem que vou esquecer a própria fala. Dizem que vou esquecer quem sou. Talvez a morte seja isso, o desaparecimento completo das palavras, até já não haver nada capaz de provar que um dia existimos.

1 comentário:

  1. Olá, Teresa! :)

    Sou a Ana (umas delas :P) do curso da Escrever Escrever. Encontrei o teu blogue que... já consta na minha lista de favoritos. :)

    Mais uma vez, muitos parabéns por este texto. :)

    Beijinhos*

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