quarta-feira, 27 de março de 2013

Tenho “bué de cenas” na minha cabeça


Saio de casa para fazer um intervalo no trabalho, sento-me na pastelaria, com um livro, para comer um croissant com uma meia de leite. Tudo estava perfeito, até perceber que há uma intrusa no meu panorama. É uma pessoa daquelas que conhecemos mais ou menos e que normalmente é amiga dos nossos amigos. O género de gente de quem não gostamos particularmente e que também não gosta particularmente de nós, mas com a qual nos sentimos de uma certa forma obrigados a fazer conversa de chacha se a virmos na rua.
Só que desta vez ela resolve sentar-se à minha frente. A conversa começa de uma forma desajeitada, claro, já que não temos nada para dizer uma à outra. Falamos das respectivas profissões. Digo que escrevo e logo o seu olhar se enleva, revira os olhos e começa a esbracejar docemente. “Ai eu também escreveria – diz – quando era criança tinha uma vida interior muito grande e blá, blá, blá. Mas agora não tenho tempo porque blá, blá. Se calhar, quando for de férias, ou me reformar, blá. Sabes, tenho bué de cenas da minha cabeça.” – declara, com um ar importante.

Quem se dedica à escrita tem de se preparar para que partam do principio de que não faz um chaveiro, que lhe telefonem ao meio dia e lhe perguntem se ainda estava a dormir, que achem que por trabalhar em casa está sempre disponível e que assumam que tudo o que tem lhe cai do céu – porque muitas pessoas, de facto, só vêm o que está num escaparate ou num ordenado. Depois, também tem de aguentar o pessoal que tem “bué de cenas” na cabeça, mas que, vá-se lá saber porquê, nunca as partilha com o mundo.  Mas faz questão de nos falar das mesmas, para percebermos bem que, se as pusesse no papel, elas seriam tão ou mais interessantes do que as nossas.
Partindo, claro, do princípio de que a escrita não é um trabalho, mas sim qualquer coisa que se eventualmente leva a cabo quando se reformar ou quando já não se tem nada para fazer. Parece-me óbvio. Eu também estou a pensar ser, por exemplo, pintora, quando me reformar, ou for de férias. Penso que será perfeitamente possível, em tipo, um mês, passar de não entender um caracol do ofício a ser uma profissional do mesmo. Basta mandar umas pinceladas e tal, fazer uns bonecos e está feito. É que me parece que teria bué de cenas para mostrar.
Mas, tipo, mesmo bué de cenas. 

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