sábado, 16 de outubro de 2010

Saudinha

No decorrer de uma consulta de rotina, deparo-me no facto de que serei obrigada, proximamente, a fazer uma microcirurgia a laser. Nada de grave, apenas uma pequena operação, que pode evitar males maiores. Tem seguro? Pergunta a médica. Não, respondo eu (e não tenho, de momento, por razões que não me cabe aqui explicar). Ao que a senhora contesta imediatamente, levantando a voz, de sobrolho franzido, e postura prepotente: Pois, mas devia ter. (Quem é a senhora para me dizer o que eu devia ou não fazer – seria a resposta ideal, mas em vez disso calo-me, como boa paciente submissa e temente). Ao que se segue o seguinte diálogo:
- Então, como não pode fazê-lo pelo privado, tem de vir ter comigo no dia x às 9h30 da manhã, ao Hospital y. Arranje a morada de alguém lá ao pé, que eu espero por si na consulta de x.
- Está bem, obrigada – respondo eu, mais por cortesia do que pelo facto de me sentir propriamente obrigada a alguma coisa.
- Não tem que me agradecer, ofereça-me antes um livro seu, que ainda não me ofereceu nada.
Fiquei, imediatamente, com muita pena desta senhora doutora, que nunca tinha recebido nenhum presente meu! Como fui capaz de tal negligência? Para além dos cem euros por consulta, e das 3 horas na sala de espera, havia-me completamente esquecido de que, em decorrência lógica do simples facto de ser sua paciente, devia também trazer a Suma Divindade do Olimpo oferendas, para lhe acalmar a ira. Ou seja, se ganhamos 1/10º do seu salário, e somos tratados a despachar, devemos ainda pagar-lhe dízimos, à boa maneira medieval.
Claro, mas a médica mesmo assim foi uma porreira – pensava eu, ao entrar nesse dia no malogrado hospital, a quilómetros e quilómetros da minha casa – atende-me aqui, mesmo sabendo que não vivo no xy#*% (ao contrário do que agora diz a minha ficha). Espero meia hora. Nada. Ninguém sabe da doutora. Mas os médicos chegam sempre atrasados, vá-se lá saber porquê, enfim, é natural. Uma hora. Nada. Em vez disso, entretenho-me a observar o corredor (sim, estou de pé, e o consultório é ao lado de uma casa de banho) vão passando grupos de jovens estagiários aflitos, e médicas brejeiras dando-lhes indicações em altos berros, no que se parece com a série televisiva Grey’s Anatomy, versão Bairro das Fontainhas. Há também os velhotes queixosos em cadeiras de rodas, a quem as enfermeiras tratam condescendentemente, como se fossem crianças de 4 anos. Pessoas que levam respostas tortas dos funcionários, e que não se atrevem a dizer nada, por humildade, e por medo de verem o seu serviço atrasado ainda mais. Gente, gente. Tudo isto e muito mais, porque entretanto já passaram duas horas. Cadeiras para quê? É um hospital público, o povo que aguente, durante horas, de pé ou sentado no chão. Como alternativa, tem uma minúscula e atulhada sala de espera em que os pacientes enlatados - gemendo, tossindo, chorando, coçando-se - podem ver os vírus condensarem-se nos vidros embaciados pelas suas simultâneas respirações. Apesar de ser um facto que aí dentro está muito mais quentinho.
E eis senão quando, aparece um senhor da secretaria.
- Era só para a informar, de que a doutora afinal não vem – diz ele, num tom displicente e casual, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo.
- Mas ela já na quinta-feira passada não apareceu, e disse-me que voltasse hoje! – contesta timidamente uma senhora de idade ao meu lado.
Que voltasse para a semana. Porque, afinal de contas, a graça da sua presença não é concedida todos os dias, mesmo que a tal se tenha comprometido. Se lhe tivéssemos dado um presente, talvez fosse mais simpática?
Daqui se depreende que a coisa funcione mais ou menos assim: o paciente perde um dia de trabalho, desmarca compromissos, muda a sua vida, acorda cedo para ir para xy*#& às nove da manhã, fica 3 horas à espera em pé, em condições sensivelmente sinistras; e o médico, se calhar, quando lhe apetecer, talvez, se digne a aparecer. Se não, teremos de voltar noutro dia, e fazer tudo de novo, quantas vezes for preciso. A responsabilidade não é de ninguém, e é tudo muito normal.
Porque no que ao nosso sistema de saúde diz respeito, ainda se funciona por castas.

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