quinta-feira, 7 de junho de 2012

Despentes (2): a violação como arma politica


Já aqui referi Virginie Despentes* e o seu ensaio sobre prostituição, violação e pornografia. Gostava de falar, desta vez, do segundo tema.

Violação igual a vergonha. Mas vergonha de quê, exactamente? De se ter sido sujeita a um dos crimes mais traumatizantes, apenas possível pela submissão do outro pela força, sexualmente. Quando alguém é assaltado ou espancado, o sentimento não é o mesmo: pode-se mencioná-lo livremente sem se ser catalogada.
Despentes, que foi violada, fala-nos da sua experiência na primeira pessoa. Defende que este tipo de crimes apenas são possíveis porque representam exactamente o tipo de relação desigual entre géneros que vivemos ainda hoje. Se não vejamos.
A literatura, religião, cinema, são apenas alguns exemplos dos veículos que formam o ideal da mulher submissa. O nosso imaginário sexual colectivo é fundado na fêmea que espera, passiva, o seu amante. A Bela Adormecida e o seu príncipe, a Rapunzel na sua torre. Nenhuma delas faz, propriamente, nada de especial. Não é por acaso: se fizesse, isso retirar-lhes-ia a sua feminilidade. Consequência disso é grande o número de mulheres que se sente excitada pela violação (homens também, suponho, só que no sentido cómodo inverso). É sintomático, não casual.
Depois de evocar, por exemplo, as imagens das mártires, Despentes escreve:  “No mundo judaico-cristão, é melhor ser-se forçada a ter relações sexuais do que tomada por puta, já no-lo fizeram entender suficientes vezes. Não existe uma predisposição feminina natural ao masoquismo, tal não vem das nossas hormonas nem do tempo das cavernas, mas sim de um determinado sistema cultural e tem implicações incómodas no exercício da própria independência.” O que faz com que muitas vezes a violação se camufle com outros nomes (“ela merecia isto e aquilo”, “só uma porca para fazer aqueloutro”) o que só acontece porque a sociedade actual nos forma para esse tipo de submissão.
Despentes reflecte, por exemplo, sobre o facto de que, quando uma mulher é violada, ninguém gosta que ela se manifeste muito sobre o assunto. Sub-repticiamente, espera-se que tenha uma vida terrível a seguir, que ganhe, por exemplo, 20 quilos, ou nunca mais consiga ter uma relação com um homem. Se não acontece nada disso, então é porque “gostou”...
Assim sendo, o número de violações oficial (no nosso pais e no mundo) está bem longe de corresponder ao número real. Muitas mulheres andam mergulhadas na vergonha e no medo, e o que é pior: encarando isso como a ordem natural das coisas, um segredo sobre o qual não fica bem falar. A vergonha cai sobre a vítima e não sobre o agressor.  
Defende-se aqui, portanto, um sistema em que à mulher não seja constantemente impingida a ideia de que, para ser aceite socialmente, deve ser frágil e dócil, tímida e resignada, não fazer muitas ondas, tudo para agradar. A igualdade de direitos e a prevenção criminal começam na educação. Um direito a reagir, a defender-se. 


* Referido aqui

1 comentário:

  1. Subscrevo a ideia do último parágrafo.

    Não a conhecia mas já estou fascinada com a Despentes.

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